Por CNN
Especialistas em saúde mental apontam que, embora a IA possa ser uma aliada no processo criativo, o uso constante e desregulado pode levar a uma espécie de “atrofia psíquica”.
O uso de inteligência artificial já faz parte da rotina de trabalho, estudo e até lazer de milhões de pessoas. Em poucos segundos, plataformas entregam textos, imagens, sugestões e até ideias inteiras, prontas para consumo. A promessa de agilidade e produtividade parece irresistível e, para muitos, virou hábito.
Mas esse atalho cada vez mais comum também levanta uma preocupação: estamos nos tornando dependentes demais dessas tecnologias? E o que esse "vício" por respostas automáticas tem feito com a nossa capacidade criativa?
Especialistas em saúde mental apontam que, embora a IA possa ser uma aliada no processo criativo, o uso constante e desregulado pode levar a uma espécie de “atrofia psíquica”, em que perdemos não só o esforço, mas a profundidade da elaboração. Criar exige tempo, frustração, silêncio e conflito interno, elementos que não combinam com a lógica imediatista das máquinas.
Cérebro quer economizar energia -- e isso tem um custo!
Segundo Renata Yamasaki, neuropsicóloga pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o fascínio pelas soluções rápidas não é apenas cultural, mas biológico. “O cérebro humano é programado para economizar energia. Então é natural que, diante de uma ferramenta que ‘faz por nós’, a gente vá se acostumando a não fazer”, explica. A consequência, porém, pode ser grave: “Há um empobrecimento simbólico da produção. A criatividade não é só o resultado final, é o processo de conexão entre memórias, vivências, afetos e referências”.
Para a psicóloga, recorrer à IA como apoio pontual pode ser produtivo, mas delegar totalmente a criação à ela significa abrir mão da autoria e isso afeta, com o tempo, a própria constituição subjetiva de quem cria. “Criar é um ato simbólico de existência. Quando você entrega a criação completamente para uma inteligência artificial, você apaga essa possibilidade de subjetivação. É como terceirizar um sonho: ele pode até ser bonito, mas não é seu.”
Perda da autoria e da identidade
Ana Café, psicóloga clínica especializada em dependência química e saúde mental, observa que o impacto da IA na criatividade segue o mesmo padrão observado com as redes sociais: o afastamento do sujeito do conteúdo que ele mesmo produz. “A inteligência artificial oferece agilidade, mas é importante que a pessoa coloque seu tom, sua criatividade. Que use como ponto de partida, não como obra final”, afirma.
Ela compara o processo a uma pintura: “A IA é a tela. Quem pinta precisa jogar suas cores ali”. Para psicóloga clínica, a criatividade depende do contato humano, de experiências afetivas e do uso das áreas cerebrais responsáveis por imaginar, improvisar e resolver. “Se eu uso só a IA, deixo de treinar esse lugar. Fico com a mente enferrujada”.
Fast-food cognitivo e subnutrição simbólica
Yamasaki usa uma metáfora direta: a IA é um fast-food cognitivo. “Sacia, mas não nutre. A gente corre o risco de ficar intelectualmente subnutrido se consumir isso o tempo todo, sem filtro”. Ela lembra que a neuroplasticidade (a capacidade do cérebro de se adaptar) pode jogar contra nesse cenário. “Se você para de exercitar funções como pensar criticamente ou escrever com autoria, elas enfraquecem”.
O efeito prático pode ser o surgimento de gerações com dificuldade de concentração, pouca tolerância à frustração e baixa capacidade de sustentar um pensamento complexo. “Quando tudo é resolvido em segundos, perde-se também o processo de maturação das ideias, que exige silêncio, elaboração simbólica e conflito interno”, diz a neuropsicóloga.
Como proteger a criatividade no cotidiano
A chave, segundo as especialistas, está no uso consciente. Yamasaki defende pausas intencionais para pensar sem atalhos, buscar o desconforto criativo e preservar momentos offline. “Não é sobre rejeitar a IA, mas usá-la com lucidez, como provocadora, não substituta.”
Ana reforça o papel das práticas analógicas para manter o cérebro ativo. “Trabalhos manuais, plantar, bordar, pintar, decorar um espaço, tudo isso estimula as áreas cognitivas envolvidas na criatividade. Principalmente quem trabalha com tecnologia precisa desse equilíbrio”.
Yamasaki ainda sugere começar projetos sem a ajuda da IA e recorrer a ela apenas em momentos pontuais, como ferramenta para expandir repertório, não para definir o conteúdo. “A autoria precisa atravessar o texto, a imagem, o projeto. Caso contrário, não é criação é consumo.”
Ambas as especialistas reconhecem o valor da inteligência artificial quando usada de forma equilibrada. Para Ana, ela pode funcionar como “um fundo”, a base a partir da qual a pessoa constrói algo único. “Mas que seja o seu jeito de pensar, sua marca. Quando alguém vê o trabalho, que diga: ‘isso é a sua cara’.”
A presença da IA em processos criativos não precisa ser vista como ameaça, mas como alerta. Criar dá trabalho e talvez seja justamente esse esforço que sustenta o pensamento original, a profundidade e a identidade de quem produz.